Mind the gap (2014)
Quebra-demanda. Quebra e demanda. Quebrar. Demandar. Substantivos, verbos, palavras que variam pelo contexto, que derivam, são derivadas ou que nos deixam à deriva. A “quebra” sugere a mudança de rota, o desvio ao sabor de intempéries. A “demanda”, por outro lado, remete à busca, à procura, à exigência a uma lógica de mercado linear, previsível, sem desvios, sem mudanças de rota. Pela e para a demanda, não há quebra. Não há deriva. Não há quebra?
Brincando com os trocadilhos nos vemos diante de um universo de possibilidades linguísticas e simbólicas. Significante e significado parecem flertar com a nossa imaginação quando nos deparamos com centenas de mudas de plantas dispostas na peculiar instalação artística elaborada pela a.m.f.. Tratam-se de mudas da espécie Justicia Gendarussa, popularmente conhecida como Quebra-demanda, erva medicinal comumente utilizada em terreiros de umbanda.
Planta das artes do mistério, do campo da espiritualidade, remédio para os maus desejos, essa espécime vegetal parece habitar o terreno das subjetividades, o campo das experiências que fogem a uma racionalidade mecanicista, uma metáfora sobre a possibilidade do desvio de uma linearidade imputada pelas vivências urbanas no capitalismo tecnológico contemporâneo.
Esse parece o fio condutor para alguns trabalhos desenvolvidos pela a.m.f., sendo o Mind the gap (2014) sua mais recente criação. Recorrendo a uma expressão utilizada em transportes urbanos, em especial nas estações de metrô para despertar a atenção dos passageiros sobre o vão existente entre o trem e a plataforma, evoca-se a ideia de interposição sobre instâncias transitadas (e em trânsito) por sujeitos, a partir da qual se dão novas e outras subjetividades.
Neste trabalho, a a.m.f. mais uma vez faz alusão à dualidade corpo x máquina, convidando-nos a refletir sobre a mecanização do tempo e do espaço, sobre a mecanização dos corpos.
Tratam-se de corpos regulados pela máquina, pela tecnologia. Nesse sentido, corpo e criação confundem-se na lógica do movimento fabril: a máquina enquanto representação da produção em série, da reprodutibilidade, da frieza e linearidade de um tempo-espaço mecânico que não permite desvios. A sugestão que parece é de uma promessa de desvio qualquer. E aqui quebra-se a demanda: a vida é o desvio.
Nesse espaço fronteiriço entre a vida e a máquina, importa pensar na assepsia e no controle enquanto mecanismos da racionalidade urbana. Enquanto estratégias de sobrevivência na lógica do cimento e do concreto, na engenharia das relações sobre pessoas e coisas. É a promessa civilizatória.
E nessa lógica linear, controlada, previsível, civilizada, corpos naturais, tais como as plantas, evocam a potência afirmativa da vida. A vida enquanto ponto e rota de fuga para a lógica mecanicista: o impulso vital que foge à linearidade enquanto potência descontrolada. O que se sugere é a força simbólica da justaposição entre lógica e acaso, racionalidade e irracionalidade, entre controle e descontrole. Um duelo (?) nos limites da indefinição entre arte e vida, no qual o processo artístico não se distingue da banalidade do dia-a-dia, não se distingue das ações vulgares. Mas que nos faz pensar sobre o artista e a sua produção que, numa lógica de mercado, também operam como “máquinas de produzir significações”. Estariam sugerindo uma reflexão sobre a “mecanização” das artes? E se operam como “máquinas de produzir significações”, estariam flertando com noções de “utilidade” enquanto fim alcançado pela prática artística?
E se flertam com a reflexão sobre a arte e uma suposta utilidade, não estariam seus “produtos”, sua criação, sob julgamento e a avaliação pública, à mercê de uma espécie de juízo de gosto igualmente mecanicista? Seria essa a demanda colocada para as criações e criadores? Seria possível quebrá-la? Quebra-se a demanda! Quebra-demanda.
Por Luciana Souza
Brincando com os trocadilhos nos vemos diante de um universo de possibilidades linguísticas e simbólicas. Significante e significado parecem flertar com a nossa imaginação quando nos deparamos com centenas de mudas de plantas dispostas na peculiar instalação artística elaborada pela a.m.f.. Tratam-se de mudas da espécie Justicia Gendarussa, popularmente conhecida como Quebra-demanda, erva medicinal comumente utilizada em terreiros de umbanda.
Planta das artes do mistério, do campo da espiritualidade, remédio para os maus desejos, essa espécime vegetal parece habitar o terreno das subjetividades, o campo das experiências que fogem a uma racionalidade mecanicista, uma metáfora sobre a possibilidade do desvio de uma linearidade imputada pelas vivências urbanas no capitalismo tecnológico contemporâneo.
Esse parece o fio condutor para alguns trabalhos desenvolvidos pela a.m.f., sendo o Mind the gap (2014) sua mais recente criação. Recorrendo a uma expressão utilizada em transportes urbanos, em especial nas estações de metrô para despertar a atenção dos passageiros sobre o vão existente entre o trem e a plataforma, evoca-se a ideia de interposição sobre instâncias transitadas (e em trânsito) por sujeitos, a partir da qual se dão novas e outras subjetividades.
Neste trabalho, a a.m.f. mais uma vez faz alusão à dualidade corpo x máquina, convidando-nos a refletir sobre a mecanização do tempo e do espaço, sobre a mecanização dos corpos.
Tratam-se de corpos regulados pela máquina, pela tecnologia. Nesse sentido, corpo e criação confundem-se na lógica do movimento fabril: a máquina enquanto representação da produção em série, da reprodutibilidade, da frieza e linearidade de um tempo-espaço mecânico que não permite desvios. A sugestão que parece é de uma promessa de desvio qualquer. E aqui quebra-se a demanda: a vida é o desvio.
Nesse espaço fronteiriço entre a vida e a máquina, importa pensar na assepsia e no controle enquanto mecanismos da racionalidade urbana. Enquanto estratégias de sobrevivência na lógica do cimento e do concreto, na engenharia das relações sobre pessoas e coisas. É a promessa civilizatória.
E nessa lógica linear, controlada, previsível, civilizada, corpos naturais, tais como as plantas, evocam a potência afirmativa da vida. A vida enquanto ponto e rota de fuga para a lógica mecanicista: o impulso vital que foge à linearidade enquanto potência descontrolada. O que se sugere é a força simbólica da justaposição entre lógica e acaso, racionalidade e irracionalidade, entre controle e descontrole. Um duelo (?) nos limites da indefinição entre arte e vida, no qual o processo artístico não se distingue da banalidade do dia-a-dia, não se distingue das ações vulgares. Mas que nos faz pensar sobre o artista e a sua produção que, numa lógica de mercado, também operam como “máquinas de produzir significações”. Estariam sugerindo uma reflexão sobre a “mecanização” das artes? E se operam como “máquinas de produzir significações”, estariam flertando com noções de “utilidade” enquanto fim alcançado pela prática artística?
E se flertam com a reflexão sobre a arte e uma suposta utilidade, não estariam seus “produtos”, sua criação, sob julgamento e a avaliação pública, à mercê de uma espécie de juízo de gosto igualmente mecanicista? Seria essa a demanda colocada para as criações e criadores? Seria possível quebrá-la? Quebra-se a demanda! Quebra-demanda.
Por Luciana Souza