A parte que antecede (Avant propos)
Por Fernando Ticoulat
Transitando entre diversas técnicas e linguagens, os artistas criam estruturas e situações que investigam noções de serviço, consumo, trabalho e lazer em nossa sociedade contemporânea. Com apurado espírito crítico, eles abordam temas densos com humor e vitalidade. Por exemplo, o vídeo Vesper, no qual eles recriam de maneira jocosa o famoso drink do James Bond em Casino Royale, explora o momento de inflexão entre a atividade lúdica, o hobby, e o trabalho. O pano de fundo é saber quando a técnica é culturalmente relevante e quando ela é mera atividade de subsistência, uma questão de difícil equilíbrio e certamente relevante no dia a dia dos artistas.
Em outras obras eles combinam engenharia e design, e os materiais não são escolhidos em função de suas propriedades físicas – como tradicionalmente se espera de uma escultura – mas sim de seus significados. Também não há interesse em produtos finais que possam ser produzidos em massa mas sim em coisas que possuem uma singularidade própria. Ao utilizarem objetos e sistemas cotidianos, lhes conferem uma nova função simbólica na qual a lógica interna transcende os elementos, desta forma ressaltando as entrelinhas conceituais e o subtexto político dos trabalhos num livre jogo de entendimento.
Essa exposição não conta uma história e não há de se falar num argumento artístico estanque e definido. Estamos diante de uma espécie de prólogo, artifício literário que começa uma história mas, mais do que mera introdução preambular, implica a anunciação de uma tragédia. Ante um horizonte de esgotamento ambiental, político e econômico, os trabalhos aqui reunidos parecem tencionar o estado de suspensão em que nos encontramos enquanto observamos impassivelmente os presságios do colapso total. A escultura Dissemelhante, protagonizada por uma panela de pressão ligada, [desencadeia esse][dá o tom deste] clima. Sob o receio natural do espectador de que a panela pode explodir a qualquer momento, a pressão se constrói dentro dela até o ponto da quase explosão, da iminência do caos, quando ela é dissolvida no ar pela liberação da válvula de segurança, num loop de estados muito similar às angústias do caldeirão social contemporâneo.
Significante e significado parecem flertar com a nossa imaginação quando nos deparamos com as obras expostas, que são menos para serem contempladas do que interpretadas. Nesse sentido, o espaço expositivo configura-se como um verdadeiro campo de força micropolítico que exige do visitante uma postura ativa (apesar do duo não explicitar suas intenções). Longe de existirem de maneira autônoma do mundo, essas obras materializam-se dentro de uma rede de percepções e representações de modos de ver o mundo e portanto se ajustam às idiossincrasias de cada um. Aí reside o potencial da experiência artística que a AMF oferece. Cabendo a nós a conclusão do trabalho, é uma experiência de cunho político que enseja rupturas na subjetividade de quem vê. Essa abertura fica evidente na escultura de parede Chapa Quente. O calor emitido pela resistência elétrica queimará o boné até ele sumir. O boné, por sua vez, foi escolhido por representar um adereço típico do trabalhador comum, que frita a cabeça com os dissabores do cotidiano. Em seu deslocamento de São Paulo para Paris, como ele será traduzido e reinterpretado diante do público inédito? De que modos suas leituras podem ser ampliadas? O que acontecerá após o boné tornar-se cinzas?
Dentro do complexo jogo de forças invocado pela dupla de artistas nesta exposição, o trabalho Sem Título nos faz inclinar sobre o porvir. Com o uso de uma caixa de luz podemos ver 20 slides contendo desenhos de projetos dos artistas que possivelmente um dia serão realizados. São esperanças para um futuro incerto, e a falta de clareza do escuro papel carbono em contraste com a luz indica a turbidez pela qual enxergamos e pensamos o futuro. Há aqui uma tentativa de escapar a imobilidade do presente, criando uma obra de arte a partir de ideias para outras obras, ou melhor dizendo, a partir das fantasias próprias da AMF. Seria possível, então, em meio ao desalento do progresso civilizador, pensar numa história para seguir daqui que não seja a tragédia? Há espaço em nós para a impossibilidade da utopia ou estamos presos à mera resignação cínica de nossa condição? Vivemos nosso prólogo?
Mind the gap
Por Luciana Souza
Quebra-demanda. Quebra e demanda. Quebrar. Demandar. Substantivos, verbos, palavras que variam pelo contexto, que derivam, são derivadas ou que nos deixam à deriva. A “quebra” sugere a mudança de rota, o desvio ao sabor de intempéries. A “demanda”, por outro lado, remete à busca, à procura, à exigência a uma lógica de mercado linear, previsível, sem desvios, sem mudanças de rota. Pela e para a demanda, não há quebra. Não há deriva. Não há quebra?
Brincando com os trocadilhos nos vemos diante de um universo de possibilidades linguísticas e simbólicas. Significante e significado parecem flertar com a nossa imaginação quando nos deparamos com centenas de mudas de plantas dispostas na peculiar instalação artística elaborada pela a.m.f.. Tratam-se de mudas da espécie Justicia Gendarussa, popularmente conhecida como Quebra-demanda, erva medicinal comumente utilizada em terreiros de umbanda.
Planta das artes do mistério, do campo da espiritualidade, remédio para os maus desejos, essa espécime vegetal parece habitar o terreno das subjetividades, o campo das experiências que fogem a uma racionalidade mecanicista, uma metáfora sobre a possibilidade do desvio de uma linearidade imputada pelas vivências urbanas no capitalismo tecnológico contemporâneo.
Esse parece o fio condutor para alguns trabalhos desenvolvidos pela a.m.f., sendo o Mind the gap (2014) sua mais recente criação. Recorrendo a uma expressão utilizada em transportes urbanos, em especial nas estações de metrô para despertar a atenção dos passageiros sobre o vão existente entre o trem e a plataforma, evoca-se a ideia de interposição sobre instâncias transitadas (e em trânsito) por sujeitos, a partir da qual se dão novas e outras subjetividades.
Neste trabalho, a a.m.f. mais uma vez faz alusão à dualidade corpo x máquina, convidando-nos a refletir sobre a mecanização do tempo e do espaço, sobre a mecanização dos corpos.
Tratam-se de corpos regulados pela máquina, pela tecnologia. Nesse sentido, corpo e criação confundem-se na lógica do movimento fabril: a máquina enquanto representação da produção em série, da reprodutibilidade, da frieza e linearidade de um tempo-espaço mecânico que não permite desvios. A sugestão que parece é de uma promessa de desvio qualquer. E aqui quebra-se a demanda: a vida é o desvio.
Nesse espaço fronteiriço entre a vida e a máquina, importa pensar na assepsia e no controle enquanto mecanismos da racionalidade urbana. Enquanto estratégias de sobrevivência na lógica do cimento e do concreto, na engenharia das relações sobre pessoas e coisas. É a promessa civilizatória.
E nessa lógica linear, controlada, previsível, civilizada, corpos naturais, tais como as plantas, evocam a potência afirmativa da vida. A vida enquanto ponto e rota de fuga para a lógica mecanicista: o impulso vital que foge à linearidade enquanto potência descontrolada. O que se sugere é a força simbólica da justaposição entre lógica e acaso, racionalidade e irracionalidade, entre controle e descontrole. Um duelo (?) nos limites da indefinição entre arte e vida, no qual o processo artístico não se distingue da banalidade do dia-a-dia, não se distingue das ações vulgares. Mas que nos faz pensar sobre o artista e a sua produção que, numa lógica de mercado, também operam como “máquinas de produzir significações”. Estariam sugerindo uma reflexão sobre a “mecanização” das artes? E se operam como “máquinas de produzir significações”, estariam flertando com noções de “utilidade” enquanto fim alcançado pela prática artística?
E se flertam com a reflexão sobre a arte e uma suposta utilidade, não estariam seus “produtos”, sua criação, sob julgamento e a avaliação pública, à mercê de uma espécie de juízo de gosto igualmente mecanicista? Seria essa a demanda colocada para as criações e criadores? Seria possível quebrá-la? Quebra-se a demanda! Quebra-demanda.
Por Luciana Souza
Quebra-demanda. Quebra e demanda. Quebrar. Demandar. Substantivos, verbos, palavras que variam pelo contexto, que derivam, são derivadas ou que nos deixam à deriva. A “quebra” sugere a mudança de rota, o desvio ao sabor de intempéries. A “demanda”, por outro lado, remete à busca, à procura, à exigência a uma lógica de mercado linear, previsível, sem desvios, sem mudanças de rota. Pela e para a demanda, não há quebra. Não há deriva. Não há quebra?
Brincando com os trocadilhos nos vemos diante de um universo de possibilidades linguísticas e simbólicas. Significante e significado parecem flertar com a nossa imaginação quando nos deparamos com centenas de mudas de plantas dispostas na peculiar instalação artística elaborada pela a.m.f.. Tratam-se de mudas da espécie Justicia Gendarussa, popularmente conhecida como Quebra-demanda, erva medicinal comumente utilizada em terreiros de umbanda.
Planta das artes do mistério, do campo da espiritualidade, remédio para os maus desejos, essa espécime vegetal parece habitar o terreno das subjetividades, o campo das experiências que fogem a uma racionalidade mecanicista, uma metáfora sobre a possibilidade do desvio de uma linearidade imputada pelas vivências urbanas no capitalismo tecnológico contemporâneo.
Esse parece o fio condutor para alguns trabalhos desenvolvidos pela a.m.f., sendo o Mind the gap (2014) sua mais recente criação. Recorrendo a uma expressão utilizada em transportes urbanos, em especial nas estações de metrô para despertar a atenção dos passageiros sobre o vão existente entre o trem e a plataforma, evoca-se a ideia de interposição sobre instâncias transitadas (e em trânsito) por sujeitos, a partir da qual se dão novas e outras subjetividades.
Neste trabalho, a a.m.f. mais uma vez faz alusão à dualidade corpo x máquina, convidando-nos a refletir sobre a mecanização do tempo e do espaço, sobre a mecanização dos corpos.
Tratam-se de corpos regulados pela máquina, pela tecnologia. Nesse sentido, corpo e criação confundem-se na lógica do movimento fabril: a máquina enquanto representação da produção em série, da reprodutibilidade, da frieza e linearidade de um tempo-espaço mecânico que não permite desvios. A sugestão que parece é de uma promessa de desvio qualquer. E aqui quebra-se a demanda: a vida é o desvio.
Nesse espaço fronteiriço entre a vida e a máquina, importa pensar na assepsia e no controle enquanto mecanismos da racionalidade urbana. Enquanto estratégias de sobrevivência na lógica do cimento e do concreto, na engenharia das relações sobre pessoas e coisas. É a promessa civilizatória.
E nessa lógica linear, controlada, previsível, civilizada, corpos naturais, tais como as plantas, evocam a potência afirmativa da vida. A vida enquanto ponto e rota de fuga para a lógica mecanicista: o impulso vital que foge à linearidade enquanto potência descontrolada. O que se sugere é a força simbólica da justaposição entre lógica e acaso, racionalidade e irracionalidade, entre controle e descontrole. Um duelo (?) nos limites da indefinição entre arte e vida, no qual o processo artístico não se distingue da banalidade do dia-a-dia, não se distingue das ações vulgares. Mas que nos faz pensar sobre o artista e a sua produção que, numa lógica de mercado, também operam como “máquinas de produzir significações”. Estariam sugerindo uma reflexão sobre a “mecanização” das artes? E se operam como “máquinas de produzir significações”, estariam flertando com noções de “utilidade” enquanto fim alcançado pela prática artística?
E se flertam com a reflexão sobre a arte e uma suposta utilidade, não estariam seus “produtos”, sua criação, sob julgamento e a avaliação pública, à mercê de uma espécie de juízo de gosto igualmente mecanicista? Seria essa a demanda colocada para as criações e criadores? Seria possível quebrá-la? Quebra-se a demanda! Quebra-demanda.
Curva de quebra-demanda
Por Raphael Fonseca
A palavra “demanda” me parece bem apropriada no que diz respeito a uma aproximação ao trabalho da Associação Massa Falida. Inicialmente, demandar pode significar a necessidade de presença ou atividade nossa e dos outros. Um trabalho como “Vending machine”, de 2012, demanda tanto do corpo dos artistas – os homens que fazem o lugar de máquina dentro de uma caixa –, quanto do público que se interessa pelo consumo a fim de que esses corpos sirvam a eles.
Por outro lado, ainda a partir desse trabalho, podemos pensar a ideia de demanda por uma perspectiva econômica, isto é, se trata de um trabalho que tem o “poder de demanda”, a capacidade de incitar a vontade de compra por parte do espectador, mas que não garante o ato consumidor. Ao pesquisar em torno dessa relação econômica, apreendi uma série de gráficos que vem da teoria da economia que transformam a relação entre preço efetivo e poder de demanda em uma curva, a chamada “curva de demanda”.
De demanda a demanda, chego nesse percurso reflexivo em “Mind the gap”, o trabalho aqui apresentado. Sobre uma área do chão, a a.m.f. cria uma superfície de terra e transforma um espaço anteriormente destinado ao grêmio da Faculdade de Farmácia da USP em uma pequena estufa. Se essa pequena plantação demandou que os artistas acionassem a sua capacidade agricultora ou jardineira, o mesmo não pode ser dito de sua conservação diária dado o seu sistema automático de irrigação pelo teto e as lâmpadas que proporcionam o calor necessário para o crescimento vegetal.
Longe da necessidade da chuva e da potência do sol, o que vemos é um ambiente que está entre a artificialidade de uma engenharia projetada pelos artistas e a permanência da vida através de fenômenos físicos e biológicos. Dentro de uma sala escura dominada pela monumentalidade de um quadrado luminoso, a estufa também pode ser encarada como uma pequena capela com um altar-mor onde Deus, mais do que ser luz, é capaz de demandar que esses pequenos corpos vegetais se enverguem em sua direção. Coincidência ou não, eis o nosso olhar perante uma outra curva que melhor seria batizada por “curva de quebra-demanda”.
Ironicamente, a erva protagonista tem um nome popular que quebra com qualquer burocracia. Mais do que isso, ao ser vinculada tradicionalmente ao orixá Ogum, deus da agricultura, da guerra e também considerado um vencedor de demandas, esta planta é capaz de nos fazer olhar para essa instalação mais uma vez. Longe, felizmente, de se colocar como uma obra panfletária no que diz respeito à reflexão sobre a afro-brasilidade, essas quatro paredes, que por alguns minutos me pareciam uma estufa e que por outros tantos foram vistas como uma capela, agora estão mais próximas de um terreiro.
Tenho a impressão, voltando para o título desse trabalho, “mind the gap”, que é nesses vazios entre imagem, palavra e cultura que a pesquisa de Pablo Viera e Silvio de Camillis ganha potência. A fruição e recodificação de seus trabalhos demanda por parte do público um tempo semelhante ao do trabalho de uma panela de pressão. Entre a economia e a religião, entre a agricultura e a engenharia, os seus trabalhos convidam o público à fruição de uma poética artística capaz de quebrar-demandas tão habituais à carregada burocracia dos cubos brancos e do circuito da arte contemporânea.
Fica o desejo de que essa curva de quebra-demanda siga a crescer saudável e purificadora, sem a necessidade de agrotóxicos.
Por Raphael Fonseca
A palavra “demanda” me parece bem apropriada no que diz respeito a uma aproximação ao trabalho da Associação Massa Falida. Inicialmente, demandar pode significar a necessidade de presença ou atividade nossa e dos outros. Um trabalho como “Vending machine”, de 2012, demanda tanto do corpo dos artistas – os homens que fazem o lugar de máquina dentro de uma caixa –, quanto do público que se interessa pelo consumo a fim de que esses corpos sirvam a eles.
Por outro lado, ainda a partir desse trabalho, podemos pensar a ideia de demanda por uma perspectiva econômica, isto é, se trata de um trabalho que tem o “poder de demanda”, a capacidade de incitar a vontade de compra por parte do espectador, mas que não garante o ato consumidor. Ao pesquisar em torno dessa relação econômica, apreendi uma série de gráficos que vem da teoria da economia que transformam a relação entre preço efetivo e poder de demanda em uma curva, a chamada “curva de demanda”.
De demanda a demanda, chego nesse percurso reflexivo em “Mind the gap”, o trabalho aqui apresentado. Sobre uma área do chão, a a.m.f. cria uma superfície de terra e transforma um espaço anteriormente destinado ao grêmio da Faculdade de Farmácia da USP em uma pequena estufa. Se essa pequena plantação demandou que os artistas acionassem a sua capacidade agricultora ou jardineira, o mesmo não pode ser dito de sua conservação diária dado o seu sistema automático de irrigação pelo teto e as lâmpadas que proporcionam o calor necessário para o crescimento vegetal.
Longe da necessidade da chuva e da potência do sol, o que vemos é um ambiente que está entre a artificialidade de uma engenharia projetada pelos artistas e a permanência da vida através de fenômenos físicos e biológicos. Dentro de uma sala escura dominada pela monumentalidade de um quadrado luminoso, a estufa também pode ser encarada como uma pequena capela com um altar-mor onde Deus, mais do que ser luz, é capaz de demandar que esses pequenos corpos vegetais se enverguem em sua direção. Coincidência ou não, eis o nosso olhar perante uma outra curva que melhor seria batizada por “curva de quebra-demanda”.
Ironicamente, a erva protagonista tem um nome popular que quebra com qualquer burocracia. Mais do que isso, ao ser vinculada tradicionalmente ao orixá Ogum, deus da agricultura, da guerra e também considerado um vencedor de demandas, esta planta é capaz de nos fazer olhar para essa instalação mais uma vez. Longe, felizmente, de se colocar como uma obra panfletária no que diz respeito à reflexão sobre a afro-brasilidade, essas quatro paredes, que por alguns minutos me pareciam uma estufa e que por outros tantos foram vistas como uma capela, agora estão mais próximas de um terreiro.
Tenho a impressão, voltando para o título desse trabalho, “mind the gap”, que é nesses vazios entre imagem, palavra e cultura que a pesquisa de Pablo Viera e Silvio de Camillis ganha potência. A fruição e recodificação de seus trabalhos demanda por parte do público um tempo semelhante ao do trabalho de uma panela de pressão. Entre a economia e a religião, entre a agricultura e a engenharia, os seus trabalhos convidam o público à fruição de uma poética artística capaz de quebrar-demandas tão habituais à carregada burocracia dos cubos brancos e do circuito da arte contemporânea.
Fica o desejo de que essa curva de quebra-demanda siga a crescer saudável e purificadora, sem a necessidade de agrotóxicos.